Por Marcos “Big Daddy” Garcia
O Brasil é um centro de formação de ótimas bandas de Metal,
em todas as vertentes do estilo. Mas ainda estamos engatinhando no que tange
falar de nossa cultura, e muitas vezes, o brasileiro parece sentir vergonha de
suas raízes. Mas existem aqueles que resistem, que sentem orgulho das raízes
pagãs dessa terra manchada de sangue e ganância do colonizador, e que promovem
um levante nativo. Entre eles, o pioneiro MIASTHENIA,
que desde 1994 vem lutando no underground, e que agora, lança “Antípodas”, seu mais recente álbum,
onde a temática central é a saga de Francisco
de Orellana contada sob a perspectiva das guerreiras Icamiabas.
Aproveitando o lançamento do disco, tivemos a oportunidade
de entrevistar Hécate,
tecladista/vocalista do grupo, e mergulhar mais fundo no contexto
lírico/musical de “Antípodas”.
BD: Salve, Hécate. Antes de tudo, gostaria de
agradecer pela oportunidade de entrevistar você. Logo de início: como e quando
teve contato com a saga de Francisco de
Orellana, e como surgiu a ideia de abordar esse tema? Aliás, a clara
impressão que tive é de que esse tema permeia todas as letras, criando um disco
conceitual, estou certo?
Hécate: Eu
agradeço pela sua entrevista e apoio ao MIASTHENIA.
Sou Professora e Doutora em História e estudei as crônicas escritas pelos
conquistadores/colonizadores sobre os ameríndios nos séculos XVI e XVII, então tive
contato com essa obra quando já quando realizava o Mestrado (1999-2002), especialmente
através dos estudos de minha ex-orientadora sobre a imagem das guerreiras amazonas
na história. No álbum “Batalha Ritual”
(2004) já tinha uma música (“Zôster”)
sobre as amazonas, então eu já vinha também me preparando e lendo sobre isso.
Mas como você bem observou, essa história de Orellana e das amazonas inspirou todo o álbum.
BD: Tanto no
encarte do CD como em uma declaração em uma nota de imprensa, o significado da palavra
“Antípodas” é explicado por vocês. Mas como cito acima, a luta das Icamiabas contra Orellana é um tema recorrente nas letras. Existe alguma ligação
entre esses dois temas que poderia nos explicar?
Hécate: Sim, tudo
está conectado, porque Antípodas se trata da forma como os seres (vistos como amazonas/icamiabas, canibais, cinocéfalos
e iwaipanomas) confrontados na
América representam o que há mais selvagem, pecaminoso, abominável e demoníaco
no imaginário cristão dos conquistadores dos séculos XV e XVII. Todos esses
seres foram representados iconograficamente nos antigos mapas onde a América
figurava como território selvagem e inóspito, como uma Antípoda (oposição) do
mundo cristão e civilizado. O álbum é uma crítica a essa visão cristã, de forma
poética busca desvelar a vontade de poder e dominação daquilo que era diferente
e inconcebível a uma sociedade colonial cristã que se tentava implantar na
América.
BD: Aliás, vamos
direto e reto ao assunto: muitos fãs não fazem a mínima idéia de quem elas são,
logo, que tal uma explicação sobre elas?
Hécate: As
amazonas são mulheres guerreiras que aparecem em várias relatos desde a Grécia
Antiga. Com a conquista da América, os europeus se depararam com inúmeras
sociedades onde as mulheres poderiam atuar como guerreiras e lideranças
tribais, e isso no imaginário dos conquistadores só poderia encontrar algum
sentido e explicação nas suas antigas tradições de mulheres míticas e
abomináveis que escapavam dos padrões de feminilidade frágil, submissa e que
seriam inimigas dos homens e da moral. Logo associaram tais mulheres a essas
que já povoavam o imaginário cristão/europeu há séculos. O problema é que nessa
associação as mulheres indígenas foram convertidas em bruxas, feiticeiras e
seres ainda mais pecaminosos, por se conectarem com um tipo de sociedade
matriarcal que devia subverter a norma cristã, ou seja, constituindo-se em um
pesadelo e ameaça. Não por acaso, a violência colonial/patriarcal usou de tais
imagens para dominar e evangelizar os indígenas. As icamiabas seriam mulheres guerreiras que viviam sem a presença de
homens em sua comunidade na região do rio Amazonas em 1542 (época da expedição
de Orellana pelo grande rio), que,
aliás, recebe esse nome por conta de uma série de relatos dos próprios
indígenas que deviam tributos ou eram aliadas dessas mulheres. Orellana associou essas mulheres às
antigas amazonas de relatos míticos gregos. Assim, na América os antigos mitos
encontravam realidade e acabaram por servir aos interesses colonialistas de
dominação, demonização e mitificação de qualquer tipo de sociedade onde as mulheres
pudessem ser independentes e guerreiras. Desde então, negou-se a presença de
mulheres guerreiras na história, já que associadas ao universo mítico, como
seres inconcebíveis. Enfim, essa é a ótica cristã e patriarcal, mas outras
histórias existem nas tradições ameríndias e são essas que nos inspiram.
BD: Ao mesmo
tempo, é interessante notar o uso da visão dessa parte da história por uma nova
perspectiva, diferente da usada pelo padre Gaspar
de Carvajal. Como essa ideia de mudar a visão do colonizador para as
guerreiras surgiu?
Hécate: Basta
mudar de perspectiva histórica e considerar as sociedades indígenas como
sujeitos legítimos de produção de conhecimento histórico também, pois a
história ensinada em nossas escolas é a história do ponto de vista cristã,
colonial e europeu que tende a apagar qualquer diversidade e especialmente o
poder e liberdade das mulheres. Por longo tempo eu estudei o imaginário
cristão/colonial sobre a América e vi suas relações com o poder, por isso venho
me dedicando também ao estudo das concepções dos próprios indígenas, porque
elas nos trazem outras perspectivas históricas, ou seja, “histórias do
possível” daquilo que foi apagado e tido como mítico/impossível nas narrativas
históricas cristãs. Nós precisamos libertar o nosso passado, para libertar
também nossas identidades no presente!
Hécate (foto: Patty Freitas) |
Hécate: É sempre
uma grande honra e satisfação trabalhar com o Caio, porque ele respeita e entende muito bem nossa proposta
temática e musical. Além disso, ele vem evoluindo cada vez mais enquanto
técnico de áudio e isso se reflete em nossos álbuns. Em vários momentos ele
também participou (nas vozes, escolha de efeitos e timbres) e acrescentou algumas
ideias ao álbum, mas sempre com enorme sintonia conosco, assim confiamos
bastante em seu trabalho e somos muito gratos a ele por todo esse trabalho e
dedicação ao MIASTHENIA.
BD: Além disso,
seguindo uma tendência que “Legados do Inframundo”
já mostrava, “Antípodas” tem canções
mais curtas e é o disco de vocês com menor duração. Isso é algo intencional, veio
do amadurecimento da banda ou teria outra origem que não sabemos?
Hécate: É
intencional, porque com o tempo vamos mesmo amadurecendo e avaliando o que já
fizemos. A intenção não era quantidade, mas sim qualidade.
BD: Fugindo um
pouquinho da atualidade, “XVI” e “Batalha Ritual” foram relançados em um
duplo CD este ano. Qual é a sensação de verem os dois discos do MIASTHENIA relançados? Isso mostra o
interesse dos fãs mais jovens na banda, concordam?
Hécate: Sim, com
certeza. A sensação foi de orgulho, porque é parte da nossa história, e ver
isso concretizado nesse relançamento é muito importante para nossa existência,
nos fortalece.
BD: Ainda pegando
o gancho do CD duplo, existe a possibilidade de “Antípodas” ter lançamento em outros países?
Hécate: Acho que
sim, o “Legados do Inframundo” foi
relançado na França pela Drakkar com as letras traduzidas para o inglês no
encarte. Mas, por enquanto estamos satisfeitos com a repercussão da edição
nacional do “Antípodas”, quem sabe
aparece uma oportunidade também de relançamento fora do Brasil.
BD: Voltando à
temática de “Antípodas”, se sente a
força do lado feminino surgindo naturalmente, não só pela temática centrada nas
Icamiabas. Como esta característica
foi se delineando, surgindo e amadurecendo no disco?
Hécate: Realmente
essa temática surge de um desejo de trazer à tona o que tanto me motiva
enquanto mulher em uma banda de metal a escrever letras de resistência indígena
ao cristianismo. Reflete minhas perspectivas feministas, pagãs e anti-coloniais
no campo da História, da política e das relações de gênero. É fruto de uma
série de leituras históricas em busca de exemplos de mulheres indígenas na
América pré-colombiana e colonial que escapavam dos padrões prescritos para as
mulheres pela cristandade. A princípio pensei em fazer uma letra para cada uma
destas personagens, e dai fui juntando textos e fontes, mas com o tempo fui me
aprofundando também nos estudos decoloniais/pós-coloniais e me surgiram muitas
reflexões e inspirações na abordagem desse tema, então o álbum não ficou
exclusivamente restrito às amazonas, porque outros personagens também aparecem,
endossando um contexto muito maior de negação da diferença confrontada na
América.
BD: Uma pergunta
um pouco triste e chata, mas que precisa ser posta na mesa: Hécate, é de conhecimento de muitos que
você é Ph.D. em História, e mesmo com o resgate da cultura pagã Pré-Colombiana
que está cada vez mais intenso no Brasil, vemos momentos lamentáveis na
atualidade: censura à exposições de artes, a queima de bonecos da Filósofa Judith Butler por setores
ultraconservadores (e pasme: aos gritos de “queimem a Filósofa”), a luta contra
os direitos individuais das mulheres, da comunidade LGBTQ, dos indígenas e
outras, etnias, ou seja, o recrudescimento que beira o TFP dos anos de chumbo
da Ditadura Militar de 1964. O mais triste: ver muitos fãs de Metal se
alinhando com esses valores. Qual a sua opinião, como música, professora,
enfim, como pessoa culta diante de tanta sandice, de tanta intolerância?
Hécate: Eu me
revolto também com tudo isso, porque reflete muita incoerência na cena Metal. Judith Butler para mim é uma grande
referência na Filosofia, porque me baseio nas suas discussões sobre corpo e
gênero em minhas pesquisas acadêmicas, o seu pensamento é subversivo e
desconstrutivo e isso sim é o que me inspira a romper com tanto dogmatismo,
fanatismo e ignorância em torno de ideias e concepções que tentam dominar o
nosso ser e nossas relações sociais. O Metal deve libertar as pessoas, surgiu
como forma de rebeldia e não deve ser usado como forma de opressão. Foi isso o
que me atraiu para o Metal, mas hoje temos que lutar para manter essa
significação. O MIASTHENIA sempre
teve uma postura abertamente antinazista dentro do cenário Black Metal e isso,
anos atrás, nos envolveu em muitas brigas e confusões, mas resistimos.
Infelizmente o cenário do Metal está cada vez mais cheio de pessoas com ideias
extremamente fundamentalistas e conservadoras: sexistas, homofóbicas e
racistas. Boa parte destas pessoas não tem consciência do quanto seus valores
em relação a essas questões se alinham com interesses de grupos, instituições e
políticos cristãos que no fundo odeiam todos nós, só visam o poder e detestam a
essência do Metal. Adoro a expressão “o Diabo é o pai do rock!”, então que
fiquem longe dele aqueles que o temem!
Nygron (Foto: Ivanei) |
Hécate: Obrigada.
A escolha não foi aleatória, tudo foi pensado em termos de som e imagem e que
era possível de se fazer, porque algumas músicas são mais cinematográficas que
outras. A música “Coniupuyaras” teve
sua letra pensada já em sintonia com as imagens. Foram meses idealizando o
local, figurino e roteiro desse clipe, e ficamos muito satisfeitos com o
resultado, o Caio fez excelente
trabalho de roteiro, direção e edição, novamente ele captou muito bem nossa
proposta. Gravamos o clipe aqui mesmo em Brasília, dentro de uma área de
proteção ambiente há menos de dois km de nossa casa, em lugar fantástico para
nossa proposta. Já o lyric vídeo de “Antípodas”
foi escolhido e pensado também em termos de sua relação com imagens, a letra
era perfeita para inclusão de antigos mapas e iconografias dos séculos XV e
XVII que traduzem o imaginário cristão colonial sobre a América enquanto
território selvagem, povoado por amazonas, canibais, cinocéfalos e iwaipanomas,
dentro outros seres estranhos e aterradores.
BD: Voltando ao MIASTHENIA,
e sobre shows? O show de 08/12 promete, mas existem possibilidades para outros
estados, e mesmo fora do Brasil?
Hécate: Sim, não
somos uma banda de longas turnês e muitos shows, porque temos nossas carreiras profissionais
paralelas à banda. Mas na medida do possível, estamos planejando uma turnê e em
breve teremos novidades para 2018.
BD: Bem, é isso. Agradeço demais pela entrevista, desejo
todo sucesso do mundo à banda, e, por favor, deixe sua mensagem para o público.
Hécate: Eu
agradeço pelo interesse e oportunidade de expor aqui um pouquinho de minhas
concepções. Vida longa ao Metal Samsara! Para aqueles que ainda não conhecem
nossa música, convido a navegar nos links logo abaixo. Em breve teremos
disponível pela Mutilation a versão de “Antípodas”
em LP (vinil). Força e honra sempre!
Contatos:
Site Oficial: http://miasthenia.com/
Facebook: http://www.facebook.com/miasthenia
Twitter:
Instagram:
Bandcamp:
https://miasthenia.bandcamp.com/
Assessoria: http://www.metalmedia.com.br/miasthenia/ (Metal
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