quinta-feira, 16 de novembro de 2017

A Desgraça de Orellana contada pelo Metal extremo - Entrevista com o MIASTHENIA


Por Marcos “Big Daddy” Garcia


O Brasil é um centro de formação de ótimas bandas de Metal, em todas as vertentes do estilo. Mas ainda estamos engatinhando no que tange falar de nossa cultura, e muitas vezes, o brasileiro parece sentir vergonha de suas raízes. Mas existem aqueles que resistem, que sentem orgulho das raízes pagãs dessa terra manchada de sangue e ganância do colonizador, e que promovem um levante nativo. Entre eles, o pioneiro MIASTHENIA, que desde 1994 vem lutando no underground, e que agora, lança “Antípodas”, seu mais recente álbum, onde a temática central é a saga de Francisco de Orellana contada sob a perspectiva das guerreiras Icamiabas.

Aproveitando o lançamento do disco, tivemos a oportunidade de entrevistar Hécate, tecladista/vocalista do grupo, e mergulhar mais fundo no contexto lírico/musical de “Antípodas”.


BD: Salve, Hécate. Antes de tudo, gostaria de agradecer pela oportunidade de entrevistar você. Logo de início: como e quando teve contato com a saga de Francisco de Orellana, e como surgiu a ideia de abordar esse tema? Aliás, a clara impressão que tive é de que esse tema permeia todas as letras, criando um disco conceitual, estou certo?

Hécate: Eu agradeço pela sua entrevista e apoio ao MIASTHENIA. Sou Professora e Doutora em História e estudei as crônicas escritas pelos conquistadores/colonizadores sobre os ameríndios nos séculos XVI e XVII, então tive contato com essa obra quando já quando realizava o Mestrado (1999-2002), especialmente através dos estudos de minha ex-orientadora sobre a imagem das guerreiras amazonas na história. No álbum “Batalha Ritual” (2004) já tinha uma música (“Zôster”) sobre as amazonas, então eu já vinha também me preparando e lendo sobre isso. Mas como você bem observou, essa história de Orellana e das amazonas inspirou todo o álbum.


BD: Tanto no encarte do CD como em uma declaração em uma nota de imprensa, o significado da palavra “Antípodas” é explicado por vocês. Mas como cito acima, a luta das Icamiabas contra Orellana é um tema recorrente nas letras. Existe alguma ligação entre esses dois temas que poderia nos explicar?

Hécate: Sim, tudo está conectado, porque Antípodas se trata da forma como os seres (vistos como amazonas/icamiabas, canibais, cinocéfalos e iwaipanomas) confrontados na América representam o que há mais selvagem, pecaminoso, abominável e demoníaco no imaginário cristão dos conquistadores dos séculos XV e XVII. Todos esses seres foram representados iconograficamente nos antigos mapas onde a América figurava como território selvagem e inóspito, como uma Antípoda (oposição) do mundo cristão e civilizado. O álbum é uma crítica a essa visão cristã, de forma poética busca desvelar a vontade de poder e dominação daquilo que era diferente e inconcebível a uma sociedade colonial cristã que se tentava implantar na América.  


BD: Aliás, vamos direto e reto ao assunto: muitos fãs não fazem a mínima idéia de quem elas são, logo, que tal uma explicação sobre elas?

Hécate: As amazonas são mulheres guerreiras que aparecem em várias relatos desde a Grécia Antiga. Com a conquista da América, os europeus se depararam com inúmeras sociedades onde as mulheres poderiam atuar como guerreiras e lideranças tribais, e isso no imaginário dos conquistadores só poderia encontrar algum sentido e explicação nas suas antigas tradições de mulheres míticas e abomináveis que escapavam dos padrões de feminilidade frágil, submissa e que seriam inimigas dos homens e da moral. Logo associaram tais mulheres a essas que já povoavam o imaginário cristão/europeu há séculos. O problema é que nessa associação as mulheres indígenas foram convertidas em bruxas, feiticeiras e seres ainda mais pecaminosos, por se conectarem com um tipo de sociedade matriarcal que devia subverter a norma cristã, ou seja, constituindo-se em um pesadelo e ameaça. Não por acaso, a violência colonial/patriarcal usou de tais imagens para dominar e evangelizar os indígenas. As icamiabas seriam mulheres guerreiras que viviam sem a presença de homens em sua comunidade na região do rio Amazonas em 1542 (época da expedição de Orellana pelo grande rio), que, aliás, recebe esse nome por conta de uma série de relatos dos próprios indígenas que deviam tributos ou eram aliadas dessas mulheres. Orellana associou essas mulheres às antigas amazonas de relatos míticos gregos. Assim, na América os antigos mitos encontravam realidade e acabaram por servir aos interesses colonialistas de dominação, demonização e mitificação de qualquer tipo de sociedade onde as mulheres pudessem ser independentes e guerreiras. Desde então, negou-se a presença de mulheres guerreiras na história, já que associadas ao universo mítico, como seres inconcebíveis. Enfim, essa é a ótica cristã e patriarcal, mas outras histórias existem nas tradições ameríndias e são essas que nos inspiram. 


BD: Ao mesmo tempo, é interessante notar o uso da visão dessa parte da história por uma nova perspectiva, diferente da usada pelo padre Gaspar de Carvajal. Como essa ideia de mudar a visão do colonizador para as guerreiras surgiu?

Hécate: Basta mudar de perspectiva histórica e considerar as sociedades indígenas como sujeitos legítimos de produção de conhecimento histórico também, pois a história ensinada em nossas escolas é a história do ponto de vista cristã, colonial e europeu que tende a apagar qualquer diversidade e especialmente o poder e liberdade das mulheres. Por longo tempo eu estudei o imaginário cristão/colonial sobre a América e vi suas relações com o poder, por isso venho me dedicando também ao estudo das concepções dos próprios indígenas, porque elas nos trazem outras perspectivas históricas, ou seja, “histórias do possível” daquilo que foi apagado e tido como mítico/impossível nas narrativas históricas cristãs. Nós precisamos libertar o nosso passado, para libertar também nossas identidades no presente! 


Hécate (foto: Patty Freitas)
BD: Sobre os aspectos técnicos de “Antípodas”, percebe-se que o trabalho de Caio Cortonesi em termos de produção, mixagem e masterização deu uma evoluída em relação ao que ouvimos em “Legados do Inframundo”. Ou seja, a sonoridade da banda está crua como o estilo que fazem, mas limpa e bem definida para as melodias e arranjos da banda fiquem evidentes. Como foi trabalhar com Caio mais uma vez? E até onde ele interferiu em algum aspecto junto a vocês?

Hécate: É sempre uma grande honra e satisfação trabalhar com o Caio, porque ele respeita e entende muito bem nossa proposta temática e musical. Além disso, ele vem evoluindo cada vez mais enquanto técnico de áudio e isso se reflete em nossos álbuns. Em vários momentos ele também participou (nas vozes, escolha de efeitos e timbres) e acrescentou algumas ideias ao álbum, mas sempre com enorme sintonia conosco, assim confiamos bastante em seu trabalho e somos muito gratos a ele por todo esse trabalho e dedicação ao MIASTHENIA.  


BD: Além disso, seguindo uma tendência que “Legados do Inframundo” já mostrava, “Antípodas” tem canções mais curtas e é o disco de vocês com menor duração. Isso é algo intencional, veio do amadurecimento da banda ou teria outra origem que não sabemos?

Hécate: É intencional, porque com o tempo vamos mesmo amadurecendo e avaliando o que já fizemos. A intenção não era quantidade, mas sim qualidade.


BD: Fugindo um pouquinho da atualidade, “XVI” e “Batalha Ritual” foram relançados em um duplo CD este ano. Qual é a sensação de verem os dois discos do MIASTHENIA relançados? Isso mostra o interesse dos fãs mais jovens na banda, concordam?

Hécate: Sim, com certeza. A sensação foi de orgulho, porque é parte da nossa história, e ver isso concretizado nesse relançamento é muito importante para nossa existência, nos fortalece.


BD: Ainda pegando o gancho do CD duplo, existe a possibilidade de “Antípodas” ter lançamento em outros países?

Hécate: Acho que sim, o “Legados do Inframundo” foi relançado na França pela Drakkar com as letras traduzidas para o inglês no encarte. Mas, por enquanto estamos satisfeitos com a repercussão da edição nacional do “Antípodas”, quem sabe aparece uma oportunidade também de relançamento fora do Brasil.


BD: Voltando à temática de “Antípodas”, se sente a força do lado feminino surgindo naturalmente, não só pela temática centrada nas Icamiabas. Como esta característica foi se delineando, surgindo e amadurecendo no disco?

Hécate: Realmente essa temática surge de um desejo de trazer à tona o que tanto me motiva enquanto mulher em uma banda de metal a escrever letras de resistência indígena ao cristianismo. Reflete minhas perspectivas feministas, pagãs e anti-coloniais no campo da História, da política e das relações de gênero. É fruto de uma série de leituras históricas em busca de exemplos de mulheres indígenas na América pré-colombiana e colonial que escapavam dos padrões prescritos para as mulheres pela cristandade. A princípio pensei em fazer uma letra para cada uma destas personagens, e dai fui juntando textos e fontes, mas com o tempo fui me aprofundando também nos estudos decoloniais/pós-coloniais e me surgiram muitas reflexões e inspirações na abordagem desse tema, então o álbum não ficou exclusivamente restrito às amazonas, porque outros personagens também aparecem, endossando um contexto muito maior de negação da diferença confrontada na América.

 
BD: Uma pergunta um pouco triste e chata, mas que precisa ser posta na mesa: Hécate, é de conhecimento de muitos que você é Ph.D. em História, e mesmo com o resgate da cultura pagã Pré-Colombiana que está cada vez mais intenso no Brasil, vemos momentos lamentáveis na atualidade: censura à exposições de artes, a queima de bonecos da Filósofa Judith Butler por setores ultraconservadores (e pasme: aos gritos de “queimem a Filósofa”), a luta contra os direitos individuais das mulheres, da comunidade LGBTQ, dos indígenas e outras, etnias, ou seja, o recrudescimento que beira o TFP dos anos de chumbo da Ditadura Militar de 1964. O mais triste: ver muitos fãs de Metal se alinhando com esses valores. Qual a sua opinião, como música, professora, enfim, como pessoa culta diante de tanta sandice, de tanta intolerância?

Hécate: Eu me revolto também com tudo isso, porque reflete muita incoerência na cena Metal. Judith Butler para mim é uma grande referência na Filosofia, porque me baseio nas suas discussões sobre corpo e gênero em minhas pesquisas acadêmicas, o seu pensamento é subversivo e desconstrutivo e isso sim é o que me inspira a romper com tanto dogmatismo, fanatismo e ignorância em torno de ideias e concepções que tentam dominar o nosso ser e nossas relações sociais. O Metal deve libertar as pessoas, surgiu como forma de rebeldia e não deve ser usado como forma de opressão. Foi isso o que me atraiu para o Metal, mas hoje temos que lutar para manter essa significação. O MIASTHENIA sempre teve uma postura abertamente antinazista dentro do cenário Black Metal e isso, anos atrás, nos envolveu em muitas brigas e confusões, mas resistimos. Infelizmente o cenário do Metal está cada vez mais cheio de pessoas com ideias extremamente fundamentalistas e conservadoras: sexistas, homofóbicas e racistas. Boa parte destas pessoas não tem consciência do quanto seus valores em relação a essas questões se alinham com interesses de grupos, instituições e políticos cristãos que no fundo odeiam todos nós, só visam o poder e detestam a essência do Metal. Adoro a expressão “o Diabo é o pai do rock!”, então que fiquem longe dele aqueles que o temem!


Nygron (Foto: Ivanei)
BD: Vocês liberaram dois vídeos: um lyric vídeo para “Antípodas”, e um vídeo oficial para “Coniupuyaras”. Como estas canções foram escolhidas, e principalmente, como foi a produção e gravação de “Coniupuyaras”? E me permitam o elogio: o resultado final é fantástico!

Hécate: Obrigada. A escolha não foi aleatória, tudo foi pensado em termos de som e imagem e que era possível de se fazer, porque algumas músicas são mais cinematográficas que outras. A música “Coniupuyaras” teve sua letra pensada já em sintonia com as imagens. Foram meses idealizando o local, figurino e roteiro desse clipe, e ficamos muito satisfeitos com o resultado, o Caio fez excelente trabalho de roteiro, direção e edição, novamente ele captou muito bem nossa proposta. Gravamos o clipe aqui mesmo em Brasília, dentro de uma área de proteção ambiente há menos de dois km de nossa casa, em lugar fantástico para nossa proposta. Já o lyric vídeo de “Antípodas” foi escolhido e pensado também em termos de sua relação com imagens, a letra era perfeita para inclusão de antigos mapas e iconografias dos séculos XV e XVII que traduzem o imaginário cristão colonial sobre a América enquanto território selvagem, povoado por amazonas, canibais, cinocéfalos e iwaipanomas, dentro outros seres estranhos e aterradores.


BD: Voltando ao MIASTHENIA, e sobre shows? O show de 08/12 promete, mas existem possibilidades para outros estados, e mesmo fora do Brasil?

Hécate: Sim, não somos uma banda de longas turnês e muitos shows, porque temos nossas carreiras profissionais paralelas à banda. Mas na medida do possível, estamos planejando uma turnê e em breve teremos novidades para 2018.


BD: Bem, é isso. Agradeço demais pela entrevista, desejo todo sucesso do mundo à banda, e, por favor, deixe sua mensagem para o público.

Hécate: Eu agradeço pelo interesse e oportunidade de expor aqui um pouquinho de minhas concepções. Vida longa ao Metal Samsara! Para aqueles que ainda não conhecem nossa música, convido a navegar nos links logo abaixo. Em breve teremos disponível pela Mutilation a versão de “Antípodas” em LP (vinil). Força e honra sempre!


Contatos:

Site Oficial: http://miasthenia.com/
Twitter:
Instagram:
Assessoria: http://www.metalmedia.com.br/miasthenia/ (Metal Media)

E-mail: miasthenia.horda@gmail.com

Assista aos vídeos de “Coniupuyaras” e “Antípodas”.