domingo, 19 de novembro de 2017

O Levante do Metal Nativo - Recuperação da Alma Mater brasileira


Por Marcos “Big Daddy” Garcia


Desde cedo, o ouvinte de Metal está acostumado a ver/ouvir elementos das culturas europeias. Algo óbvio, uma vez que, em termos de quantidades de discos relevantes lançados, a Europa suplanta atualmente os EUA.

Vikings, celtas, paganismo/mitologia, literatura... Quase sempre temos nomes como IRON MAIDEN, BATHORY em sua “fase viking”, AMON AMARTH, entre tantos outros, evocando a cultura dos povos antigos de seu continente de origem, ou então, aproveitando de elementos históricos ou mesmo da literatura de seus países e autores.

E o Brasil?

Encarte de  “Arise”. Reparem nas imagens de fundo.

Bem, digamos que as origens da preocupação das bandas de Metal brasileiro com a cultura de seu próprio país têm raízes não muito velhas, tão pouco são recentes. Se formos falar de forma determinística, a primeira vez em que o SEPULTURA levou aos palcos adornos de palco que lembram a cultura indígena Pré-Colombiana na época de “Arise”. Estas figuras surgem no encarte do LP, como aqueles ídolos de pedra de origem Tolteca.  Não sei antes, sou sincero, mas esse seria o momento em que começa o Levante do Metal Nativo do Brasil.

Basicamente, a palavra “levante” neste texto tem a conotação de revolta, de oposição. Revolta contra o descaso, e oposição não no sentido de não receber a cultura de fora (o que seria uma tolice, já que o Brasil é um dos países mais mestiços do mundo), mas de rebuscar as raízes de sua própria cultura. Em suma: já que se fala tanto em vikings e celtas, bem como de autores europeus e americanos, por que não aproveitar a riqueza histórico/cultural/social de nosso país, seja nas coisas boas ou ruins, para suas músicas e letras?

Se formos falar em termos de história, o SEPULTURA continua sendo um pioneiro nesse sentido. “Kaiowas”, uma instrumental de “Chaos A.D.”, vem nos lembrar da luta do povo indígena no Brasil, em especial os Guaranis-Kaiowás. Em 2012, uma carta lembrou o número de suicídios entre esta etnia, um genocídio silencioso daqueles que lutam para sua terra não ser invadida e tomada por grandes senhores de lavouras ou criadores de gado. 

SEPULTURA da época de “Arise”.

Esta ligação do quarteto com a cultura dos índios se torna ainda mais forte em “Roots”. Aliás, não apenas a instrumental “Itsári” (aquela que o grupo gravou na Aldeia Pimentel Barbosa, da tribo Xavanti), mas todo o conceito visual e musical de “Roots” foi um autêntico mergulho na Alma Mater do Brasil. Basta olhar as letras e dar de cara com certas referências. Ou mesmo no vídeo de “Roots” e “Ratamahatta”. Nem mesmo a Ditadura Militar foi esquecida, bastando uma olhadinha em “Dictatorshit”.

Talvez a oposição dos fãs mais velhos na época (1996) tenha sido primordial para que este despertar nativo tenha demorado um pouco mais.

ANGRA da época de “Holy Land”.

Óbvio que o ANGRA tem sua colaboração com “Holy Land”, de 1996. Mas já haviam feito algo que buscava um pouco da nossa musicalidade em “Angels Cry” com um “insert” regional em uma das canções, mas a brasilidade aflora nos temas de “Holy Land”. De certa forma, poderíamos dizer que o quinteto paulista quase que adaptou a visão do escritor Camões em suas letras. O ponto de vista lírico é neutro, mas tende a observar a história da perspectiva do colonizador (o que não é errado, pois é apenas história).

“Roots” e “Holy Land” tiveram, ao seu modo, um impacto comercial forte e mostrou ao mundo um pouco da cultura mestiça de nosso país.

MIASTHENIA.

Mas podemos dizer que a revolta do Metal brasileiro começa mesmo em 1995. Neste ano, timidamente, o MIASTHENIA mostra a cara com sua Demo Tape ao vivo. Em “Tempos Negros”, já com algumas referências à cultura indígena Pré-Colombiana. Mas as lanças e arcos são erguidos em definitivo com “XVI”, de 2000. O próprio título já é uma referência ao início do processo de colonização da América do Sul pelos colonizadores, bem como a resistência dos povos ameríndios à chegada do colonizador. No álbum mais recente, “Antípodas”, o grupo conta, pela perspectiva dos nativos, a saga de Francisco de Orellana descendo o rio Amazonas de sua origem nos Andes até a foz, e a guerra da tribo guerreira das Icamaúbas.

Também na década de 90, surge um nome marcante do cenário brasileiro: OCULTAN, de São Paulo. Desde a Demo Tape “Regnus ad Exús” de 1996, a temática do grupo foca as entidades da Quimbanda, que pode ser descrita como sendo “um culto Necromântico, ela é uma síntese entre cultos africanos, bruxaria européia e elementos indígenas”, lembrando uma entrevista de Count Imperium (vocalista do grupo) para o Metal Samsara. Óbvio que o ponto de vista é blasfemo, mas a diferença: os exus tomam o lugar das figuras demoníacas de origem judaico/cristã, algo nunca feito até então. Hoje em dia, as letras da banda ganharam maior complexidade, mas a figura de Exu continua presente.

OCULTAN.

Com a chegada da segunda década do século XXI, esse rebuscar da cultura do Brasil (bem como figuras obscuras e momentos de nossa história) ganha mais força.

Se analisarmos com mais calma, vemos o ARANDU ARAKUAA de Brasília (DF) rebuscando suas raízes indígenas, como pode ser ouvido nos dois discos do grupo, “Kó Yby Oré” (2013), e “Wdê Nnãkrda” (2015), no que podemos chamar de Brazilian Folk Metal, uma vez que usam elementos musicais derivados da cultura indígena e letras em Tupi. O grupo chegou a ser centro de uma matéria da BBC.

ARANDU ARAKUAA.

Nessa mesma linha, embora ainda em estágios iniciais, também tempos o TUPI NAMBHÁ, também de Brasília, que em seu primeiro trabalho, o EP “Invasão Alienígena” (2017), mostra a visão dos povos Pré-Colombianos do Brasil em relação aos colonizadores, como se fosse uma invasão de seres extraterrestres. O que não deixa de ser uma verdade, já que a mesma visão do índio como “bárbaro, pagão e inculto” de espanhóis, portugueses, holandeses e franceses era devido ao bojo cultural desses.

Outro que vem para falar de suas raízes indígenas é o quinteto paulista VOODOOPRIEST, que toca Thrash/Death Metal. Capitaneado por Victor Rodrigues (ex-TORTURE SQUAD), o grupo mostra a força do sangue mestiço que fertiliza o solo do Brasil em “Mandu”, disco conceitual que trata da revolta indígena na capitania hereditária do Piauí entre 1712 e 1719. O líder da revolta: Mandu Ladino, um índio Arani que fora cristianizado e posteriormente vendido como escravo. A Revolta de Mandu Ladino (como é conhecido este movimento) nasce do rancor de Mandu ao ver a cultura de seu povo der tripudiada, e mais tarde, ao ver uma índia (irmã dele) sendo morta, e se estende por Pernambuco, Piauí, sertão de Maranhão e chegará até o Ceará. E nela já se percebe a ganância e maus tratos dos senhores da pecuária contra os povos nativos, algo comum até os dias de hoje (muitas vezes, com as bênçãos dos governos Federal, Estaduais e Municipais).

VOODOOPRIEST.


Imagem do vídeo de “Mandu”, do VOODOOPRIEST.

Do Rio de Janeiro, vem o quarteto TAMUYA THRASH TRIBE. Se no EP “United”, de 2012, já enfocavam temas históricos (em especial em “Immortal King”, cuja letra fala de Zumbi dos Palmares), um grito de consciência histórica/cultural é dado em “The Last of the Guaranis” (2016). Trechos cantados em Tupi-Guarani (“The Voice of Nhanderu (Von)”), canção gravada com coral de crianças da Aldeia Mata Verde Bonita (de Maricá-RJ) dentro de uma oca (“Oreru Nhamandú Tupã Oreru”), lembranças de Lampião (“Vinte e Cinco” e “Violence and Blood”), presença de Zazy Guajajara (uma poetisa cujo trabalho é feito em Tupi, sendo ela da etnia Guajajara Tenetehar, cuja presença vem da adaptação de um de seus poemas, “Háhé’m”, que significa “Gemido”), e mesmo a participação da Babalorixá Gleys Graden e seus ogãs, juntamente com Marcelo D2 na dobradinha “Brado de Xangô” e “Senzala/Favela”.

TAMUYA THRASH TRIBE com Zazy Guajajara. 

TAMUYA THRASH TRIBE em um evento em 2015.

E falando em história, podemos falar do HATE EMBRACE, grupo de Techno Death Metal de Pernambuco, que após um primeiro álbum focado em temas estrangeiros, faz em “Sertão Saga” (2014), seu segundo disco e um álbum conceitual, um mergulho na cultura do Nordeste ao tratar da história de Virgulino Ferreira da Silva, conhecido popularmente como Lampião. Além disso, muito das músicas regionais do Nordeste brasileiro, bem como a arte do Cordel, estão presentes. Vale um adendo: muitos afirmam ser Lampião um bandido comum, mas quantos de fato entendem a opressão dos senhores de fazenda sobre os mais pobres, bem como o descaso do governo federal (que só entrou na questão para mandar caçar e matar Lampião) e dos estados e municípios em promover políticas igualitárias de inclusão e sustento dos menos favorecidos.

HATE EMBRACE.

Capa de “Sertão Saga”.

Existem outros, como o ARMAHDA (SP), GANDAVO (PE), CANGAÇO (PE), MORRIGAM (AM), entre tantos outros. O KABARAH, finada banda de Black Metal de Niterói (RJ), apesar de não ser dedicado exclusivamente a temas brasileiros, tem em “Pytuna-Syk” (de sua primeira Demo Tape, “The True”, de 1998) uma canção cantada em Tupi-Guarani. Parece que, finalmente, o músico brasileiro vem tomando posse de sua herança, sem se sentir inferiorizado.

Não, não há preconceito contra Viking, Celtas ou Folk Metal europeu aqui. Este autor ouve e gosta destes estilos e temáticas, mas não tem medo ou vergonha das raízes culturais do Brasil. Aliás, tem orgulho dessa Alma Mater que tem sido escavada aos poucos e está crescendo.

Talvez, este levante tenha como origem a frase “e por que não?”, já que:

- Por que não usar temas Pré-Colombianos ao invés de Vikings?
- Por que não falar da história do nosso país, ao invés de falar de outros?

No fundo, muitas vezes somos levados ao desprezo às nossas raízes por culpa de ensinamentos grotescamente errôneos. Algumas coisas que já ouvimos:

- “O índio é cachaceiro e vagabundo!”: não, meus filhos não... O índio do Brasil vivia em harmonia com a natureza, pela qual nutre respeito (já que ela é divina na visão dele). Ele não extrai dos recursos naturais mais do que o necessário para a própria subsistência, algo que o consumismo em que vivemos condena veementemente. Você é manipulado para acreditar nesse tipo de mentira, uma vez que raramente temos a oportunidade de ver/ouvir/conviver com índios nos dias de hoje;

- “Cangaceiros eram bandidos e estupradores!”: não discordo da existência de crimes por conta dos cangaceiros independentes (que não seguiam ordem de quem quer que fosse, além do líder do grupo), mas penso que a polícia no sertão tinha as mesmas práticas cruéis (muitas vezes, piores que as dos próprios cangaceiros). Além do mais, para muitos, o cangaço independente não era uma opção por mera bandidagem de “quem não queria trabalhar”, mas a única saída para as muitas injustiças que acometiam o povo do Nordeste da época. Além do mais, narrativas dão conta que Lampião mantinha seus cangaceiros sob rígida disciplina. Infelizmente, muito desses conhecimentos são plantados por campanhas ideológicas tanto do governo como dos grandes fazendeiros.

- “Os negros têm que agradecer por terem sido escravos!”: Sim, já li/ouvi este tipo de coisa, baseada no pensamento que o povo africano era “bárbaro, inculto, pagão”, logo, a escravidão teria lhes dado noções de sociedade. Antes de tudo, é preciso entender que cada povo da antiguidade tinha sua própria noção de sociedade, valores e cultura. E tal julgamento se dá mediante à uma visão totalmente paralela ao pensamento do colonizador, que reconhecia apenas a si mesmo como “civilizado, culto e cristão”. Foi contra esse tipo de pensamento que Zumbi dos Palmares se ergueu.

Zumbi dos Palmares.

Há muitos pontos que poderiam ser narrados aqui, mas o texto perderia o sentido. No fundo, esta “rebelião” das bandas brasileira contra os modelos já estabelecidos e propostas de novos (que são bem vindos, pois aglutinam ainda mais cultura ao gênero) é algo saudável. Ele também gera conflitos internos, pois nos força a pensarmos fora da caixinha de ideias a que fomos condicionados por anos e anos. Para isso serve o levante do Metal nativo do Brasil.

Aliás, sendo sincero: o nome desse artigo, eu peguei o nome emprestado de um grupo de bandas do Brasil que visa justamente a valorização dos elementos de nosso país no Metal, o Levante do Metal Nativo. Não se trata de mais uma “panelinha” de bandas a causar divisões e problemas ao cenário nacional (como algumas por aí com suas regras), mas cujo trabalho é unir e fortalecer o uso este lado cultural/histórico no Metal brasileiro.

A nossa Alma Mater agradece... O Metal agradece...

E segue a rebelião, segue o levante...